SEGMENTO 2
Cartografias afetivas de cidades invisíveis: mapeamento sensível dos espaços habitados por pessoas em situação de rua
ÉTICA EM PESQUISA
CAAE 77880024.2.0000.5582
A pesquisa está aprovada pelo Comitê de Ética desde 2024 e segue toda a cartilha de tratamento ético, humanizado e comprometido com as pessoas em situação de vulnerabilidade
REFERÊNCIAS
BRASIL
Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto nº 7.053, 2009)
Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua (Resolução nº 605, 2024)
Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (Lei nº 14.821, 2024)
Este segundo segmento tem por objetivo ampliar o escopo de metodologias para a abordagem de espaços públicos de uso coletivo no Rio de Janeiro, buscando, desta vez, analisar a configuração de espaços intitulados “invisíveis”, que são fabricados por pessoas em situação de rua nas metrópoles, em especial no Rio de Janeiro. Essa abordagem ganha corpo após os resultados do primeiro segmento, “Cartografias de Histórias Interrompidas”, que a partir do final do ano 2022 começou a revelar, nas ruas do Rio de Janeiro, um cenário de aumento da pobreza e de ocupação das áreas livres e públicas por diversas pessoas sem teto, em grande parte como resultado da Pandemia pela COVID 19.
Em estudo citado na Resolução Nº 605, de 13 de dezembro de 2024, realizado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua/POLOS-UFMG), constatou-se que haviam 22.922 pessoas em situação de rua em 2013, 242.756 pessoas em dezembro de 2023 e 309.998 em 2024, ou seja, os números cresceram mais de 10 vezes nos últimos 10 anos.
No Rio de Janeiro, o Censo de População de Rua 2023 da Prefeitura identificou 7.865 pessoas somente na capital, um aumento de 8,5% em relação a 2020, quando 78,6% exerciam alguma atividade para a obtenção de renda informal, 57,7% como catadores de materiais recicláveis, 20,7% camelôs, 3% flanelinhas e 3,5% trabalhavam com carteira assinada. Ignorar a força desses dados sobre o uso do espaço urbano é praticamente impossível.
Por esta razão, desde o final de 2023, a pesquisa passou a tratar esses dados como ponto de partida para a análise do contexto espacial contemporâneo da cidade do Rio de Janeiro, diante do aumento expressivo do número de pessoas que vivem nas ruas, sem direito à justiça social. Através do georreferenciamento, e também por meio de abordagem qualitativa, com emprego de entrevista semiestruturada e oferta de alimentação e acolhimento, a equipe busca as informações in situ, em rondas/derivas noturnas realizadas por diversos bairros da capital, e assim são levantados os nomes, tempo de permanência nas ruas, os trajetos que essas pessoas realizam durante o dia na cidade, e o seu papel laboral não formalizado.
Por meio do desenvolvimento de cartografias afetivas que exploram a oportunidade de “habitabilizar” o espaço livre, atrelada à possibilidade de encontrar no espaço urbano as dimensões sensíveis necessárias à proteção desse “corpo sem rumo”, são mapeados os locais/bairros em que a mobilidade desses corpos constrói um território e quais significados são revisados diante desse mapa-deambulante. Para isso, utilizam-se aplicativos como o Strava e as plataformas MyMaps e QGis, além de registros fotográficos e de desenhos etnográficos.
A pesquisa de gabinete, com a análise posterior do dados, as conjecturações e mapeamentos das narrativas angariadas por pessoas em situação de rua em trabalho de campo, assim como a construção de mapas com a geolocalização das pessoas, fazem parte do conjunto de atividades que vem sendo desenvolvidas nesta pesquisa com o apoio da FAPERJ e CNPq, a parceria com a Ouvidoria do Tribunal Regional do Trabalho – 1ª Região e a participação na ONG Só Vamos!.
Os objetivos específicos desta etapa da pesquisa são:
> delimitar o tipo de apropriação e os usos da cidade nessas “cidades invisíveis”;
> contribuir para o desenvolvimento de cartografias que apresentem dados sensíveis e atrelados às necessidades de revisão das práticas urbanísticas;
> desenvolver um elenco de categorias que representem as pessoas em situação de rua no RJ;
> permitir um planejamento de cidade que leve em conta as formas de uso/apropriação e as atividades dos praticantes ordinários do espaço físico; e
> formar recursos humanos de excelência na pesquisa em Arquitetura e Urbanismo.
Metodologia
SAÍDAS NOTURNAS
Em bairros do Rio de Janeiro, com equipe em van locada.
MAPEAMENTO DIGITAL
ENTREVISTAS
Aplicação de entrevistas semiestruturadas, acompanhadas de oferta de alimentação e diálogo direto.
REGISTROS ETNOGRÁFICOS
Produção de fotografias, croquis e anotações em campo.
PARCERIAS
Com a ONG Só Vamos! e a Ouvidoria do TRT 1ª Região, com apoio da FAPERJ e do CNPq.
ÉTICA EM PESQUISA
Aprovada em Comitê de Ética (CAAE 77880024.2.0000.5582).
Etapa 1
PRODUÇÃO
Mapa noturno com dados espaciais do Segmento 2, evidenciando deslocamentos e apropriações da cidade por pessoas em situação de rua
REFERÊNCIAS
Roberto DaMatta
A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (Rocco, 1997)
–
Marco Antonio Mello; Arno Vogel
A favela e o asfalto: um estudo sobre a habitação no Rio de Janeiro (Zahar, 1980)
–
Richard Sennett
O declínio do homem público (Companhia das Letras, 2014)
Incursões noturnas de mapeamento / 2023–2025
Tecnologias e procedimentos de mapeamento
O princípio do mapeamento consiste, primeiramente, na delimitação de trajetos por onde uma van locada circulará, transportando cerca de 10 pessoas, por bairros da capital do RJ. Essas saídas noturnas são pensadas com base em reportagens de pessoas ou da mídia jornalística, quando informações sobre pessoas em situação de rua ou sobre atividades de coleta de material reciclável são publicizadas e sempre discutidas em equipe.
Em cada saída, os pontos onde as pessoas são encontradas são anotados com suas coordenadas no mapa interativo do Google™, o MyMaps, e, posteriormente, no software QGis, cuja licença educacional pertence à UFRJ. Para traçar cada trajeto, utiliza-se o aplicativo Strava, que acompanha o movimento do corpo da coordenadora e da equipe, tanto dentro da van quanto ao longo das ruas, construindo um modelo dinâmico 3D e 2D.
O georreferenciamento em tempo real dos pontos de localização de pessoas em situação de rua tornou as etapas de saídas noturnas muito mais precisas e adequadas. Numa saída noturna, por exemplo, realizada pela região norte do RJ (Méier e Cachambi) em 21/11/2024, o MyMaps mostra exatamente a quantidade de pessoas em cada trajeto analisado, além de informações sensíveis obtidas pelas entrevistas, o que permitiu um incremento em tempo real ao consolidar informações visíveis por todos os pesquisadores ao mesmo tempo e, posteriormente, por outras pessoas.
O ecossistema Google Maps é um serviço de mapas e navegação GPS que permite pesquisar, visualizar e obter direções a partir da integração de informações, o que aumenta a eficiência do processo e a possibilidade de colaboração entre pesquisadores.
Incursões em campo
A Etapa 1 do segmento “Cartografias Afetivas de uma Cidade Invisível”, em andamento desde o final de 2023, trata de analisar alguns estratos da cidade por meio de sondagens diretas em determinados bairros: Centro, Gamboa, Tijuca, Vila Isabel, Copacabana, Botafogo, Méier e Cachambi, com uma varredura inicial nas Zonas Norte, Centro e Sul.
Essas sondagens demonstraram, desde a primeira saída noturna no Centro do Rio de Janeiro, mais especificamente na Cidade Nova, que é necessário adotar uma metodologia de abordagem estratificada. Por isso, o processo metodológico se baseia em três etapas sequenciais:
1> busca direta da localização de pessoas em situação de rua por bairros pré-definidos, por meio de saídas a campo em horários noturnos e com o auxílio de transporte fretado para a comodidade e segurança da equipe;
2> acolhimento e conversa direta com os interlocutores, com fornecimento de alimentação e de material explicativo sobre a pesquisa;
3> aplicação de entrevista semiestruturada, visando mapear os pontos de permanência noturnos e as deambulações diurnas/vespertinas, além de registros das narrativas pessoais.
Metodologia social
O método, em sua primeira fase, realizado desde o final de 2023, 2024 e o início de 2025, consolida respostas bastante profícuas. Foram sondados, em 2024, os bairros da Gamboa, Centro, Botafogo, Copacabana, Tijuca e Vila Isabel; mais recentemente, em 2025, os bairros do Méier, Bonsucesso, Cachambi e Ramos. Comprovou-se que há uma rotina ou um motivo para o deambular, que se manifesta em atividades tão diferentes quanto as praticadas pelos nossos interlocutores, o que permite elencar algumas categorias de uso do espaço urbano.
Os percursos citados pelas pessoas em situação de rua fazem parte da paisagem cotidiana do Rio de Janeiro. Por exemplo, na primeira saída noturna realizada em 18/12/2023, foi possível comprovar que a permanência dos interlocutores num mesmo local de pernoite (o edifício dos Correios na Cidade Nova, entrada do Centro do RJ) não significava que todos viviam como uma comunidade inerte; pelo contrário, aproveitavam-se da posição estratégica para deambular durante o dia, às vezes por mais de 10 km, e praticar alguma atividade laboral, como catar material reciclável, atuar como “flanelinha”, tornar-se artista de rua ou vender produtos comestíveis.
Esta primeira fase continuará a ser desenvolvida em 2025 e 2026, de modo a reunir respostas de outras zonas da capital, como a Zona Oeste e a Baixada.
Resultados, categorias urbanas e novas interpretações da cidade
A ideia de perambulação como ação descompromissada foi abandonada a partir desta pesquisa, pois muitos interlocutores relataram ações completamente alinhadas às atividades laborais em seus percursos diários. Nos mapas-deambulantes criados, é possível identificar as diferentes distâncias que algumas dessas pessoas percorrem durante um único dia para que, no fim do mesmo, retornem ao lugar de pernoite compartilhado pelo grupo.
Tal confirmação evidenciou que muitos interlocutores não se consideram pessoas em situação de rua, e sim trabalhadores “da rua”, com problemas econômicos e de mobilidade urbana. A grande maioria desses “pendulares” reside na Zona Oeste, na Baixada Fluminense e em outros municípios circunvizinhos, que estão distantes da área onde o trabalho de rua se desenvolve.
O pequeno universo de pessoas entrevistadas entre o início de 2024 e meados de 2025 (cerca de 160 pessoas), encontradas em trabalhos de campo noturnos, indicou que as noções de ocupação e de funcionalidade da cidade não refletem a realidade materializada dos planos urbanísticos.
A pesquisa tem demonstrado um novo rumo para a concepção de “classe trabalhadora” e de territorialidade, por conta de alguns fatores:
1> a assunção de que os trabalhadores da rua cumprem um papel social – seja limpando calçadas, cuidando de portas de comércio ou coletando material reciclável;
2> o pernoite em comunidade (grupos de 3 ou mais pessoas, residentes de um mesmo local por mais de 1 ano, por exemplo) consolida um espaço simbólico e identitário importante;
3> a definição de personagens típicas pode demonstrar formas repetidas de manutenção do espaço urbano, como nos primeiros ensaios de Sennett (2014) sobre a metrópole.
De forma sintética, no período de desenvolvimento dessa pesquisa, as atividades com maior atuação foram: profissional da reciclagem (38,6%), vendedor ambulante (14,3%), andarilho ou garimpeiro – sem atividade laboral definida (7,6%), flanelinha (6,7%), vendedor subsidiado por outra pessoa (4,2%), servente de obra (4,2%), artista de rua (1,7%), profissional da prostituição (1,7%). Os demais 21% indicaram “nenhuma atividade” ou apenas se associaram a “desempregado”.
Etapa 2
participação e visibilidade / 2025–2026
A Etapa 2, recentemente iniciada, trabalha com as seguintes ações:
1> entrega de “kit de desenho” (cadernos e lápis coloridos) a alguns dos informantes da Primeira Fase, para que seja devolvido o protagonismo àqueles que conformam a pesquisa e para que esses interlocutores construam seu próprio caderno de campo da cidade, que será apresentado à equipe de pesquisadores em momento oportuno;
2> oferta de “adesivos plásticos auto-descolantes” (como chamamos na pesquisa), para que o informante os cole em suportes espaciais que indiquem os locais por onde a pessoa passou, evidenciando a presença desse flagelo em diversos bairros da cidade. O adesivo contém uma frase de efeito: “a cidade não é minha casa”, de modo a popularizar a pesquisa e construir um sentimento de (re)descoberta dos lugares, dando visibilidade à sociedade civil sobre a ocupação desses espaços por pessoas em situação de rua.
Alguns adesivos já foram distribuídos em saídas realizadas na Tijuca, Bonsucesso e Ramos, no Rio de Janeiro, e no distrito de Manhattan, em Nova Iorque (etapa realizada pela coordenadora no Programa de “Professor Visitante”, na Columbia University, NY). Os adesivos foram encontrados, alguns dias depois da entrega a pessoas em situação de rua, em locais próximos àquele da entrega e, invariavelmente, próximos a zonas comerciais intensas, como se fosse uma alusão à necessidade de visibilidade de seus trajetos.
Através da apuração dos resultados obtidos nas análises das 2 etapas (por meio de registros gráficos – croquis, gravações audiovisuais, entrevistas e depuração das narrativas) serão delimitados os dados e meios necessários para a interpretação dessas cidades invisíveis, por um modelo de cartografia afetiva que está sendo estudado, de modo a favorecer a compreensão e a obtenção dos dados quantitativos e qualitativos.
Conclusões
REFERÊNCIAS
Félix Guattari; Suely Rolnik
Micropolítica: cartografias do desejo (Vozes, 1986).
–
Richard Sennett
O declínio do homem público (Companhia das Letras, 2014)
–
Vanessa Tiengo
O fenômeno população em situação de rua enquanto fruto do capitalismo (Textos & Contextos, 2018)
A síntese do método construído em “Cartografias afetivas de uma cidade invisível” permitirá, ao final da pesquisa, prevista para 2027, a representação global por meio de esquemas gráficos georreferenciados e análises sensíveis que evidenciarão o padrão de circulação e permanência de pessoas em situação de rua em determinados espaços físicos da cidade, reforçando o valor dos aspectos sensoriais das ambiências urbanas e promovendo a visibilização de uma cidade ocultada pela falta de políticas públicas ou inadequado planejamento urbanístico. Por meio dessas análises sensíveis, dispostas pelas narrativas, será possível mapear determinados tipos de pessoas “na rua”, como Tiengo coloca (2018), uma vez que só é atribuída uma figura-personagem quando há uma ação do corpo na cidade.
Neste momento, a pesquisa já conseguiu elencar 4 personagens arquetípicos e propôs uma leitura da cidade por meio desses trajetos, a partir das narrativas coletadas (vide o artigo publicado, intitulado “Narrativas urbanas de personagens invisíveis: as (des)políticas públicas na cidade de pessoas em situação de rua”).
Cada personagem foi definida por um conjunto de atributos que se assemelham aos de outros personagens analisados. Do total de interlocutores da pesquisa, esses quatro tipos “da rua” são emblemáticos para os demais, pois retratam a forma como se apropriam do território e mantêm a convivência com outras pessoas em situação de rua e com a sociedade civil, criando seus territórios de vida. Guattari e Rolnik (1986, p.323) definem território como: “(…) tanto um espaço vivido quanto um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’”. São essas as personagens: o garimpeiro; o catador de lixo extraordinário; o caixeiro-viajante; e o livreiro ambulante.

